“A engenharia portuguesa não está unida”
Não haverá, na história da engenharia portuguesa, um profissional tão condecorado como Armando Rito. Aos 80 anos, o engenheiro que foi já distinguido a nível internacional com a Medalha Freyssinet e o Prix Albert-Caquot, entre outros, afirma que a engenharia nacional não está “unida” e que se encontra actualmente desprestigiada
Pedro Cristino
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Não haverá, na história da engenharia portuguesa, um profissional tão condecorado como Armando Rito. Aos 80 anos, o engenheiro que foi já distinguido a nível internacional com a Medalha Freyssinet e o Prix Albert-Caquot, entre outros, afirma que a engenharia nacional não está “unida” e que se encontra actualmente desprestigiada. Em entrevista ao Construir, Rito atribui a queda do prestígio da engenharia ao critério do preço mais baixo nos concursos públicos e explica que um verdadeiro engenheiro “sente a engenharia” e é capaz de “ver a estrutura a funcionar no espaço”
É, neste momento, o engenheiro português que mais distinções recebeu. Quais dessas distinções destaca?
Há prémios referentes a obras, como o da Régua, da Vasco da Gama e o Secil, e há prémios que são essencialmente de carreira. Destes últimos, os mais importantes são o da FIP – que depois se transformou em FIB [Fédération Internationale du Beton] -, a Medalha Freyssinet e o Prix Álbert-Caquot. A Medalha Freyssinet é atribuída pelo Presidium da FIB, de quatro em quatro anos, apenas em congresso. A Medalha FIP/FIB é atribuída nos outros três anos, nos simpósios. Em 1998 recebi a medalha FIB, e foi a única atribuída a um português. São decisões do Presidium, composto por nove membros. Já a Medalha Freyssinet é o prémio mundial mais importante no campo das estruturas de betão e é atribuída sem concurso. É uma escolha de um núcleo muito restrito de pessoas. Portanto, para mim, as mais importantes são a Medalha Freyssinet e o Prix Álbert-Caquot, cuja atribuição alterna entre um engenheiro francês e um engenheiro estrangeiro cada ano.
Para si estas são provas do reconhecimento da capacidade da engenharia portuguesa?
Lá fora, sim. Aqui, infelizmente…
Acha que não é reconhecido o seu valor dentro de portas?
Os engenheiros portugueses têm uma característica que é uma séria falta de união. Não se juntam e não defendem a classe. Olhe os arquitectos: quando o Siza ou o Souto de Moura são galardoados no panorama internacional, isso prestigia a classe. Portanto, mesmo que não gostem uns dos outros, juntam-se, porque é importante. E, efectivamente, a engenharia portuguesa, que desde há muitos anos atrás fez coisas notáveis não está unida. Muitas vezes explicava – e continuo a explicar – aos meus colegas estrangeiros que quem está por trás da grande evolução da regulamentação das estruturas do betão é o Laboratório Nacional de Engenharia Civil. Nós estamos por trás disso tudo, fomos fundamentais: fizemos barragens, tínhamos uma tecnologia de barragens, tínhamos uma tecnologia de pontes que fazia inveja a qualquer país. E nunca explorámos isso.
De que forma não foi explorado?
Já fiz notar isso. A Embaixada Portuguesa em Maputo decidiu fazer uma exposição sobre a obra do arquitecto Souto de Moura, comissariada pelo adido cultural. Com que intenção? Essencialmente de promover a arquitectura portuguesa na África do Sul e na região. Podiam fazer uma exposição sobre a engenharia portuguesa, comissariada por um adido cultural. Mas veja lá se fizeram. Os arquitectos fizeram. Mexem-se. Sabem fazê-lo.
Mas na sua opinião, essa desunião…
Não é desunião, é “não-união”. Cada um trata da sua vida e não entendem que prestigiar uma pessoa, prestigia a profissão.
E o país…
E o país, também!
Acha que o trabalho dos engenheiros ocorre nos bastidores?
Não é nos bastidores. Quando eu ensinava e quando fazia conferências costumava dizer que as pessoas se esquecem de uma coisa simples: por trás de qualquer acto da sua vida, está um engenheiro. A engenharia está por trás de tudo. Um arquitecto, se quer fazer uma casa, precisa de um engenheiro. Um engenheiro, se quiser, faz uma casa.
Essa noção de que há engenharia por trás de tudo não está inculcada na sociedade?
Não é sentida porque os engenheiros não colocam a coisa clara. Enquanto que os arquitectos comunicam as suas obras, têm a atenção dos jornais, controlam o meio cultural, os engenheiros não. Estão quietinhos, cada um no seu cantinho.
E como se poderia fazer sentir essa noção?
Fazendo o mesmo que fazem os outros.
Unirem-se e promoverem-se?
Promoverem-se. Fundamentalmente, actualmente é preciso é fazer propaganda pura e simples.
Tem já um percurso de carreira bastante longo, trabalhou com engenheiros de renome, como Edgar Cardoso…
Aliás, foi com ele que fiz o meu estágio. Depois convidou-me e trabalhei com ele, mas foi um tempo relativamente curto. Éramos duas personalidades muito marcadas, mas demo-nos sempre muito bem. Ele queria que eu ensinasse mas eu sempre achei que a minha carreira era ser engenheiro e não professor.
Tem algumas referências a nível de pessoas e de obras?
Uma das minhas grandes referências é o engenheiro Freyssinet. Tenho também como referência o Edgar Cardoso, por aquilo que me transmitiu. Não conheci Freyssinet, mas li-o. As referências são as suas obras. A minha escola de engenharia, essencialmente – tirando a escola do Edgar Cardoso – é a escola francesa, na engenharia de pontes. É a noção de que, tal como dizia Freyssinet, a dedicação à profissão são 48 horas por dia, senão não se vai a parte alguma.
Continua a achar que é assim, actualmente?
É. Vou fazer agora 80 anos e estou aqui.
Mas isso é uma questão de saúde…
Mas há alguns cuja única coisa que os preocupa é quando se conseguem reformar. Depois vão para gestores, fazer aquilo que é o maior desastre que existe actualmente na sociedade, que é a folha Excel. Para esses, tudo se resume a uma folha de Excel e o resultado está à vista.
É necessária vocação para se ser engenheiro?
Sim. Quando comecei a carreira, cada engenheiro que fosse mesmo engenheiro tinha os seus segredos – certos cálculos e certas formas de resolver os problemas. Agora vai-se ao centro comercial, compra-se o computador, com o programa. Há um dito muito antigo que os americanos tinham sobre os computadores que é “junk in, junk out”.
Entra e sai lixo?
Se a pessoa, quando tem os resultados, acredita no “deus” computador e não sabe interpretar, depois sai asneira. Uma das críticas que o Edgar Cardoso me fazia era que eu usava computadores e eu disse-lhe que usava computadores porque me permitiam fazer as contas muito mais rapidamente. É só isso: permitem-me fazer coisas que antigamente só poderia fazer com análise experimental, com os modelos. Mas é uma ferramenta, não é deus, não é a verdade. E as pessoas acreditam no que a ferramenta lhes diz e não têm espírito crítico. Se forem necessárias pessoas que façam cálculos, vai-se ali à porta do Técnico e elas estão lá e sabem fazer cálculos que eu já nem faço ideia de como se fazem. Agora, engenheiros? Contam-se pelos dedos da mão.
Mas o que necessitam de ter para serem engenheiros?
É sentirem a engenharia, serem capazes de ver a estrutura a funcionar no espaço e olhe que nem toda a gente consegue ver uma obra no espaço. Quando quisemos fazer a Ponte de Vasco da Gama, havia aquela “fantasia” das certificações de qualidade e surgiu um inglês, que vinha ver se tínhamos a qualidade necessária e só se preocupava com o circuito dos papéis. E eu perguntei-lhe quem é que garantia a qualidade do meu trabalho. Respondeu-me que era com o chefe, com o verificador. Eu respondi-lhe que era ele o certificador de qualidade. Depois, quisemos fazer uma certificação de qualidade porque estava na moda e disseram-me que eu tinha de fazer um procedimento para a concepção. Respondi que o meu procedimento era o seguinte: levanto-me, vou tomar um duche e enquanto tomo o duche, penso na obra. Isto não é uma fábrica de salsichas. Numa fábrica de salsichas pode haver procedimento. Na concepção, é aquilo que me vem à cabeça. E é por isso que é gravíssimo aquilo que estão a fazer, que são os concursos de projecto.
Porque é gravíssimo?
No concurso de projecto, o Estado e os senhores do Tribunal de Contas dizem que a adjudicação será feita pela proposta mais favorável ao Estado, isto é, a de menor custo. E eu perguntei-lhes como avaliavam a qualidade do meu trabalho pelos meus honorários. Houve uma altura em que um secretário de Estado disse, relativamente à Ponte do Arade, em Portimão, ao director de pontes, que a minha proposta era muito cara. Eu respondi que se o senhor secretário de Estado pensava que levava um projecto por mil contos, estava completamente enganado. Leva é mil contos de projecto.
E qual foi a resposta?
Não tive porque não se pronunciou. E já agora explico-lhe: o que faço é seguir escrupulosamente as tabelas de honorários do Estado, que estavam bem pensadas. Depois entrou-se neste rateio de andar a fazer concursos. O professor Edgar Cardoso respondia que não ia a concursos de projecto e perguntava sempre: “se você tiver de fazer uma operação, vai contratar o médico mais barato ou o melhor que o seu bolso pode pagar?” E isto é a mesma coisa. O resultado é este. O contabilista – não digo gestor, porque não gere coisa nenhuma – quando pensa no projecto, pensa em honorários. E depois tem um mau projecto e tem custos brutais logo no início da obra que vai fazer, porque o projecto foi muito mal pensado. Chamo a isto não só ser contabilista, como ser estúpido e, ainda por cima, não ter cultura nenhuma, não saber escolher. E disse isto aos senhores do Tribunal de Contas, que acham que o que defende melhor os interesses do estado são os honorários mais baixos. Eu vou pôr dinheiro do meu bolso para fazer uma boa obra, ou para estar aí a encarar alternativas e a fazer estudos, mesmo admitindo que sou capaz de fazer um bom projecto?
Isso pode ser uma questão que advém da falta de conhecimento técnico de quem decide…
Está à espera que um gestor tenha conhecimento de quê? Sabe – e mal, provavelmente – trabalhar com a folha Excel, não tem cultura, não tem entendimento em mais nada.
Faltará, porventura, o engenheiro nessa equação?
Mas antigamente, quando a nossa engenharia foi grande, a Junta Autónoma de Estradas era dirigida por engenheiros e não por gestores nem economistas. E os engenheiros tomavam decisões. Que tivessem, agora que há gestores, um gestor para os aconselhar nas questões financeiras, tudo bem. Agora, entregar a Junta, entregar um hospital, etc, a um contabilista? Estão a gozar comigo e o resultado está bem à vista.
Referiu que o engenheiro Edgar Cardoso não ia a concursos. Posso depreender que a questão dos preços baixos já é antiquíssima?
Não. Isto começou já no fim dos anos 90, provavelmente. Não quer dizer que o ajuste directo seja sempre a solução, porque é evidente que permite o compadrio. Mas a transparência não é só não deixar haver concorrência, é também saber escolher na concorrência. Durante anos e anos, em quatro ou cinco concursos, respondia a um, em que ficava em último lugar porque levava as tabelas de honorários. Era só para marcar posição. Agora, meterem-me no mesmo saco – como me metiam muitas vezes – com os outros concorrentes, fazendo muitas vezes os concursos limitados com cinco, eu respondo que me estão a insultar. Se querem entregar a outros projectistas, entreguem, mas não façam de mim lebre, porque já sabiam que eu ia com o preço mais alto, mas tinham que respeitar a lei. A mania de que isso permite a transparência não é verdadeira, contudo, todas as leis podem ser dribladas. É a estupidez e a arrogância da pessoa ao pensar que, lá por ter um grau académico é capaz de fazer tudo. Não é, não tem o bom senso de perguntar a quem sabe, a alguém que explique que não é o preço mais baixo, mas sim quem oferece a melhor qualidade.
Daí, a necessidade de pessoas com conhecimento na área junto dos decisores, ou como decisores?
Mas quantos engenheiros estão no Governo? Eu dizia aos meus colegas, já no fim dos anos 90, princípio de 2000, que o que estava a acontecer era que os engenheiros passavam a maus gestores e os gestores a maus engenheiros.
Os engenheiros não podem dar bons gestores?
Podem. Eu tive muitos que estagiaram comigo. Sabe que isto de fazer engenharia é trabalhoso. Um arquitecto pode fazer os maiores disparates imagináveis, a obra pode ir para três ou quatro vezes o custo e ele é um “artista, que foi mudando de ideias”. Um engenheiro que faça uma asneira é responsável. Cai uma ponte e é uma chatice.
A ideia do arquitecto enquanto artista já não é nova…
Exacto. Faça a porcaria que fizer. Mas o problema que se coloca é o seguinte: a profissão de engenheiro é extremamente exigente, dá muito trabalho, é mal paga e, ainda por cima, envolve responsabilidades imensas. Portanto, não vale a pena. Ainda por cima, acabou por se desprestigiar.
Ultimamente?
Sim. Nos últimos anos, tem-se desprestigiado. Para já, não houve aquelas escandaleiras que fizeram da JAE, que era “tudo uma cambada de ladrões” e, ao fim e ao cabo, parece que ninguém foi preso, que eu saiba. Mas nesse caso, as razões políticas que estiveram por trás, não interessam. O resto, depois, foi o que se viu e, infelizmente, a engenharia não se defendeu capazmente. Depois, houve as questões de Entre os Rios, quando caiu a ponte. Quem é que queriam condenar? Os engenheiros. Viu algum condenado? Não viu. Foram os engenheiros que foram tirar a areia? Não. O que andavam os políticos a fazer? Eu fui entrevistado na altura e disse o que tinha a dizer. Depois houve ainda todo este disparate de não se programar capazmente o desenvolvimento do país, de sermos comandados pela banca, que quer fazer o dinheiro de imediato. E, a seguir, em vez de termos o trabalho escalonado e pensado, fizemos trabalho excessivo, obras inúteis, espatifámos o dinheiro todo e, de repente, fechámos a loja, e a engenharia portuguesa desmantelou-se.
Ou foi lá para fora…
Ou foi lá para fora, sim, mas vai lá para fora, não vai fazer engenharia. Vai ser empregado. Tive vários engenheiros que trabalhavam comigo e foram lá para fora, mas são funcionários. Não foram para lá ser autónomos, nem fazer, eles próprios, engenharia.
E, em Portugal, não há muitas empresas de engenharia com dimensão?
Não há e as que havia com grande dimensão, foram vendidas. A COBA foi vendida aos angolanos, a Cenor foi vendida à TPF… As empresas pequenas, a maior parte fechou e algumas vão sobrevivendo. O desprestígio e as dificuldades que se atravessam levaram a que haja pouca gente a matricular-se em engenharia civil e isso vai ter consequências graves para o país porque, quando precisámos deles, não temos.
É um reflexo do desprestígio da classe?
É também. É mal paga, desprestigiada, sujeita a um mercado de trabalho miserável, que procura, com as dificuldades, pagar mal e exigir responsabilidades. Chegámos a um ponto em que uma actividade que tinha as capacidades que teve está neste estado. O Laboratório Nacional de Engenharia Civil [LNEC] luta com falta de apoio. Eu acho espantoso que se considere, num Governo, seja ele qual for, que um laboratório de engenharia, em vez de ser avaliado pelo que produz, é avaliado pelo que gasta e talvez tivesse até de dar lucro. Não é para dar lucro, assim como um hospital. Mas, na realidade, começa-se a querer empurrar para lá. Nos tempos do Manuel Rocha e do Ferry Borges, o LNEC desenvolveu trabalho de investigação para tudo quanto era sítio, tinha um prestígio mundial notável e não tinha o Estado a regatear-lhe a verba, porque a gastava onde devia gastar. Sabe o que acontece nos tempos que correm? As pessoas têm um salário, e para trabalharem têm que lhes pagar mais. Têm que lhes pagar os incentivos, aquelas habilidades contabilísticas que dão lucros onde os prejuízos são perfeitamente alucinantes, que é para, depois, ter a minha comissão porque fui um bom gestor.
Isso é um mundo de banca?
Infelizmente não é banca. O que vê agora nas empresas públicas? Não é isso? As pessoas a receberem porque têm lucros, quando nós sabemos que a empresa está endividada em milhares de milhões? E, a seguir arranjam um lucro de 70 ou 80 milhões e, no fim, então, o gestor foi um belíssimo gestor e recebe uma comissão. Sou pago porque tenho emprego e, depois, recebo por cima para trabalhar.
Regressando ao tema dos concursos, o próprio custo do projecto, dentro do orçamento de uma obra, é significativo?
Não tem significado nenhum. Repare: as tabelas de honorários antigas tinham quatro classes de dificuldade e davam percentagens do custo final da obra entre 1% e 4%, se não me engano. Acha que 4% é alguma coisa? Já expliquei isto aos empreiteiros e ouvia “você está a pedir-me 200 mil euros ou 100 mil euros pelo projecto? Vou ali entregar o projecto àquele senhor que faz isto por 50 mil”. Eu costumava responder que o senhor não sabia fazer contas porque, provavelmente, o projecto que lhe iam fazer, em vez de custar 50 milhões de euros, vai custar 100 milhões, mas o senhor fica contente porque poupou 50 mil euros. Cada um tem o seu quintal. As empresas, a partir de uma certa altura, passaram a ter as unidades de negócio. Há um responsável pelo negócio da área de projectos, outro responsável pelos equipamentos, etc, e cada um tem e gere a sua verba, e quer chegar ao fim e apresentar resultados. Sabe que, se os resultados forem favoráveis, tem comissão. Portanto, está-se completamente nas tintas para que o projecto seja bom ou mau. Interessa é que ele geriu o seu projecto e mostrou resultados. O tipo da obra é que se trama e paga as asneiras do que tomou decisões porque, infelizmente, depois não se ouvem entre eles, não dizem o que correu mal e porquê. Uma vez propus que deveriam fazer o seguinte: analisar as obras, verem o custo de adjudicação da obra e verem o custo final, para saberem o que têm de trabalhos a mais, e o que houve de asneiras, e esses senhores são escovados, pura e simplesmente. Porque, se em Portugal, se accionassem os seguros, a maior parte deles não tinham sequer porta aberta.
Mas os seguros têm um limite…
Sim, mas era quanto bastava. Porque depois, quem quer que os fosse contratar já pensaria duas vezes. É como um automobilista. Se começa a bater demasiadas vezes, o seguro já não o cobre. Mas claro está que não o quiseram fazer.
Accionar os seguros?
Não. Avaliar e dizer que “este, este e este, antendendo à sua má prestação do trabalho, não são mais escolhidos, são afastados!”.
Ficavam referenciados numa base de dados?
Exactamente. É simples. E estabeleciam-se níveis de competência para cada um. Eu fiz sempre questão de não ter trabalhos a mais e não tive. Isso é extremamente importante. Um trabalho a mais não significa que houve um erro de projecto. Pode ser, mas também pode querer dizer que a obra acabou por custar eventualmente o preço pela qual deveria ter sido adjudicada, se o projecto tivesse sido logo pensado como deve de ser, se não tivesse havido falhas. Isto é completamente diferente de dizer que se aquele projecto é que era o adequado. Eu posso escolher uma má solução e ter um projecto eficaz, sem trabalhos a mais, mas, uma solução boa, faria com que a obra custasse muito menos. São duas coisas diferentes e é aí que está a questão dos honorários. Este é capaz de fazer um projecto que é realmente o adequado e o outro não é, e faz um, mas que, do ponto de vista do cálculo, dos desenhos e da pormenorização está eficaz e não teve trabalhos a mais. Mas se, para aquele projecto, começa a haver trabalhos a mais, são erros de projecto e isso quer dizer que, efectivamente, numa boa parte das vezes, é incompetência. Outras vezes são circunstâncias que não foram previstas, essencialmente nas fundações, ou circunstâncias fortuitas que não se esperavam e que muito provavelmente não se poderiam prever.
Como acidentes relacionados com o clima?
Sim, às vezes, imprevisíveis como cheias. Quando fazemos uma ponte sobre um rio, fazemos uma análise das cheias mas, de vez em quando, aquilo excede. Eu não posso estar a dimensionar estruturas que resistam a tudo. Tenho é que garantir que não colapsam. Agora, se ficam arruinadas, paciência. Não haveria dinheiro suficiente para fazer estruturas dessas [que resistem a tudo]. Agora, a preocupação de não haver trabalhos a mais é fundamental porque, se eu não penso o meu projecto capazmente e não tenho tudo previsto, o empreiteiro pode fazer uma análise de projecto e dizer “isto vai precisar de mais isto e mais aquilo” e distorce os preços de início. E, a seguir, vai cobrar o que quer, inclusive até em coisas que são trabalhos que não foram concursados mas que tiveram de ser feitos. Eu acho que é fundamental para o cliente, que é o dono da obra – o Estado ou o empreiteiro, no caso das concessões – que este processo foi a concurso e custa 100 e vai ficar por 100. Por isso é que eu digo que, se não há trabalhos a mais, se todo o meu projecto está preparado, dimensionado e estudado de maneira a que haja um caderno de encargos extremamente exigente, que não dê margem ao empreiteiro para fugas, aquilo é aquilo, custa aquilo e acabou. Acho que é um ponto de honra que todos os engenheiros deveriam fazer.
Mas não é algo comum nesta área?
Há muitas falhas.
Como vê a dinâmica de negócios no sector da engenharia em Portugal?
Não há trabalho, ponto final. Irá haver na parte de reabilitação mas a reabilitação que se vai fazendo consiste em dar uma pintura por fora e disfarçar. A seguir, quem vier atrás que feche a porta.
Mas, por exemplo, o Estado anunciou investimentos na linha férrea…
Sim. Aí haverá. Nas estradas, é algo difícil. Infelizmente, há pedaços de auto-estrada que não ligam a coisa nenhuma. Faltam acabar ligações. Tenho obras, ali no Pinhal Interior que deviam ter sido feitas e que foram cortadas. A ligação a Coimbra não foi feita. Quem toma decisões destas é, mais uma vez, um mero contabilista porque se a estrada já ia render pouco, assim ainda rende menos. Falta um bocadinho de investimento e corta-se. Porquê? Porque tem de se cortar cegamente. Ao menos que haja a inteligência de se perceber o que se corta e porque se corta. Aliás, vai ali ao Alentejo e vê aquelas obras. Estão lá todas penduradas e depois vai tudo para o lixo.
E no mercado externo?
É complicado. Tenho muitas e grandes obras em Angola mas o problema, neste momento, é que Angola está sem dinheiro. Parou novas contratações, o dinheiro que devia, continua a devê-lo, vão desvalorizando o kwanza – portanto, aquele dinheiro vale cada vez menos – e não se está a ver muito bem o fim da situação e a recuperação. Moçambique nunca foi um mercado muito interessante e, mais uma vez, é a mesma história: as pessoas ficam convencidas que fazem concessões e o concessionário pensa que vai ter que ter as coisas a durar durante o tempo da sua concessão. A seguir, não duram. Quando era o Estado que fazia as obras, sabia que era o dono. No nosso caso, aqui, o Estado demitiu-se completamente, inclusive de fiscalizar aquilo que é seu, que é meu e, ao fim ao cabo, nós é que pagámos. É nosso e, portanto, devíamos fiscalizar para ver se é bom ou mau mas não, quem construiu é que se autofiscalizou.
É uma prática corrente?
Foi o que fizeram cá. É uma prática que se faz, muitas vezes, lá fora. Eu fiz obras com franceses, inclusive aqui, no IP3. Todos os meses, vinha cá uma equipa de franceses e fiscalizavam-se a eles próprios.
Não há aí conflito de interesses?
Não. Têm outra cultura. É um problema cultural. São exigentes consigo próprios! E isto não é dizer que vamos adoptar a legislação deste ou daquele países, porque está escrito no papel. Quando isto começou, almocei com os responsáveis da Enor e disse que isto de nos autofiscalizar-nos ia dar problemas porque o engenheiro de obra diz assim: “é uma chatice andar na obra, tenho de me levantar muito cedo, tenho que andar de botas, chove-me em cima, ando na lama, eu quero é subir e ter resultados para subir”. O director de produção diz: “eu quero é resultados para ir para administrador”. O administrador quer é resultados. Todos eles querem resultados para trepar. Portanto, um belíssimo engenheiro de obra passa a ser um mau director de produção, o director de produção – bom director de produção – passa a ser um mau administrador e o administrador está-se nas tintas porque, daqui a um ano, como teve uma gestão com retorno, vai ser convidado por outro onde vai ganhar mais. Enquanto que, no caso dos franceses, os directores de obra eram bem pagos mas a sua carreira era feita em obra, não iam para gestores nem para administradores. Por isso eram excepcionais, do melhor! Aqui não. Eu posso ser muito bom a fazer obra mas vou dar um mau administrador de certeza.
O que é que não pode faltar num projecto de uma ponte?
A concepção é a base. Um cálculo competente e algumas coisas que procuro sempre: uma memória clara – coisa que infelizmente é cada vez mais difícil, porque as pessoas não sabem escrever – que diga o que esteve na sua cabeça na origem do projecto, como o encara, ou como se vai desenvolver a obra, uns desenhos extremamente detalhados e competentes, e um caderno de encargos em que tudo esteja previsto, que não dê hipóteses para que empreiteiro possa vir renegociar seja o que for. E também umas medições que reproduzam correctamente as quantidades e as qualidades de trabalho que vão ser executadas.
Guarda algumas das suas obras com especial carinho?
Acho que as obras que definem bem, que cristalizam, o meu pensamento e tudo o que desenvolvi e introduzi de diferente na engenharia portuguesa são a ponte do Arade, a ponte Miguel Torga na Régua e o viaduto do Pranto. É uma coisa com quase 2 quilómetros de extensão que, efectivamente, junta tudo o que desenvolvi na parte de fundações, na parte de tabuleiros, etc. São três obras representativas do trabalho, do conhecimento e das coisas diferentes que fui introduzindo na concepção estrutural do país.
A que se refere?
São conceitos. Uma das coisas com que eu embirro é quando vou a uma conferência, ou a uma apresentação e ouvir as pessoas dizerem que fizeram uma inovação. Inovações surgem duas ou três em cada século, o resto são desenvolvimentos. O caso da estaca-pilar, por exemplo. Se eu preciso de um pilar de 2 metros, para aguentar a carga do meu tabuleiro, porque não faço uma estaca com exactamente o mesmo diâmetro e, quando chega cá acima, meto-lhe uma cofragem e continua como pilar. Assim, só tive de fazer uma estaca, não tive de fazer o maciço de encabeçamento, não tive de fazer escavações, nem ensecadeiras. Introduzi esse conceito e, a partir daí, é o que se usa em Portugal.
O que o atrai tanto nos projectos de pontes?
A ponte é uma estrutura limpa. É estrutura e a verdade do seu funcionamento está perfeitamente à vista. Numa conferência que fiz lá fora, referi que a ponte é um objecto que, além de ser utilitário – um edifício também é um objecto utilitário! – é um acto simultaneamente de arquitectura e de engenharia, mas extremamente mais difícil porque, enquanto que, num edifício, posso disfarçá-lo, posso orientá-lo, numa ponte tenho aquele traçado que é o traçado óptimo. A verdade estrutural está à vista. Num edifício não está. A estrutura que lá está dentro, sabe qual é? Sabe se está boa, se está má, se está bem feita, se está bem pensada? Não sabe. Na ponte sabe. A estrutura está. Portanto, é, simultaneamente, um objecto de arquitectura e de engenharia e a engenharia tem a sua verdade estrutural bem à vista. Também dizia que uma obra mal concebida, por muito que eu tente disfarçar, não há disfarce que consiga esconder o que está mal pensado, porque está à vista.
Com base na sua experiência, e olhando para o estado actual do sector da engenharia, que conselho pode dar aos jovens engenheiros que acabam de sair das universidades?
Se não conseguirem empregar-se cá, vão lá para fora, porque lá fora precisam. Aliás, quando se estava a conduzir a ponte do Arade, os meus colegas franceses, que estavam lá, e eles já se queixavam – em 1991 – que começavam a ter muita falta de engenheiros em França, porque as pessoas não querem ir para Engenharia. É um problema na Europa e de país desenvolvido.
Porque já estão infra-estruturados?
Não é isso só. É a questão das exigências, das responsabilidades, do pagamento mau. Lá fora, os alemães têm falta [de engenheiros], os franceses não terão tanto, porque têm um meio muito forte, devido ao facto de terem tido grandes nomes na engenharia. Tiveram, realmente, nomes muito grandes, que eram louvados, acarinhados e publicitados. Eram homens que receberam honras. O seu país reconheceu-os. Vai ler uma biografia de um Freyssinet, de um Caquot….efectivamente, o seu país reconheceu o contributo que deram à engenharia. Aqui, o Edgar Cardoso não foi reconhecido. Depois de morto lá lhe conseguiram arranjar o nome de uma rua – não sei o que é que isso adianta – e nunca foi reconhecido.
Ao mesmo tempo, o nome de Edgar Cardoso é reconhecido dentro da sociedade da engenharia portuguesa…
É, porque fazia aquela barulheira toda e a televisão gostava era do escândalo. Era mais conhecido pelo seu mau feito.
Mas, a nível internacional, a engenharia portuguesa é reconhecida?
É. Não é por acaso que eu tenho o reconhecimento que tenho. São sete prémios estrangeiros e quatro portugueses. Mas isto é tipicamente português.
Mas isso também é uma demonstração da qualidade da engenharia portuguesa…
Isso é! Quando recebi a Medalha Freyssinet, quando agradeci disse que era um reconhecimento e, aqui, quando me perguntaram, referi que era o reconhecimento de que a engenharia portuguesa vale o que vale.
Como vê hoje o ensino da engenharia?
Temos bom ensino. Mas, por exemplo, em França, continuam a ter os professores de carreira e depois vão escolher as pessoas com maior nome nos referidos campos para serem convidados e darem aulas. Porque uma ponte tem vários tipos de conhecimento mas, depois, a execução, o pensamento e a concepção tem de vir de quem tenha feito, não é dos livros. Mas nós não fazemos muito isso. Temos muito a preocupação com a carreira [de professor] e isso acaba por se reflectir um pouco no ensino. Porque há uma geração de engenheiros que eram professores e já se reformaram, e que fizeram [obra] e, neste momento, deixa de haver trabalho. Os que fizeram, ou estão muito velhos como eu ou estão a caminho disso e, portanto, não vão transmitir conhecimento e experiência. Esse é o problema que pode ser grave: a transferência do conhecimento prático, da execução do trabalho. Agora, no conhecimento teórico, não há esse problema.
Não havendo obra, não há como ter prática…
Esse é o problema. Depois, acaba por se produzir aquilo que antigamente, quando eu era novo, era o calculista, que é quem faz os cálculos mas que, se não se tem experiência de obra, falta-lhe o resto, o filtro. Mas eu acho que eles [jovens engenheiros] têm muito boas hipóteses de ter trabalho, mas, nesta fase, terão mesmo de escolher ir lá para fora.
Essa experiência no estrangeiro pode ser importante?
É. Até porque sair daqui do nosso cantinho abre muito as vistas a muita gente. Somos desenrascados.
O desenvolvimento tecnológico em Portugal tem feito, nos últimos anos, contribuições importantes para a área da engenharia?
Em Portugal fizeram. Como houve um volume muito grande de obras, era, efectivamente, necessário encontrar sistemas adequados e modificações que dessem resposta à urgência e à quantidade de execução. Aqui em Portugal houve um desenvolvimento importante com o Pedro Pacheco, da Universidade do Porto, na parte dos cimbres, que deriva de uma tese de doutoramento que fui acompanhando, até fui membro do júri. Dei-lhe a sugestão de que aquela tese [que resultou no Sistema OPS] era muito adequada para uma coisa que é utilizar pré-esforço nos cimbres. Ele desenvolveu aquilo. Há anos que ando a tentar convencer uma pessoa, que é notável nas estruturas metálicas, para a aplicação do pré-esforço nos cimbres para os tornar mais ligeiros e mais capazes.
O contributo do LNEC para a engenharia tem sido importante?
Tem, sim senhor. Depois da ponte do Tejo, a parte de observação de obras praticamente parou e, com a ponte de Fagilde, a primeira ponte de avanços com um projecto português, convenci a Junta Autónoma de Estradas e, a partir daí, recomeçou-se a instrumentação de obras e a observação e, aí, houve contributos muito importantes no comportamento dos betões a longo prazo, no comportamento das estruturas, com ensaios de carga e, nisso, o LNEC teve um grande contributo. No resto, nas barragens e hidráulica e no resto, teve sempre também um grande contributo. Com a parte da reabilitação, também muita coisa foi pedida ao LNEC para instrumentar e observar, e foi dado um impulso muito importante. Pessoalmente, acho que o LNEC foi sempre uma instituição fundamental no desenvolvimento da engenharia nacional e tenho muita pena das várias tentativas de estrangulamento e de subfinanciamento que a casa tem sofrido. O Estado, e todos nós, temos que pensar que há instituições que não está aqui para dar lucro. A única coisa que acho admissível é que se peçam contas do investimento, agora, cortar o investimento? Haja maneiras!
O número de vagas nos cursos de Engenharia Civil poderá levar-nos a uma situação de falta de engenheiros no futuro?
Vamos ter falta a relativamente curto prazo porque, como em tudo, o nosso parque de pontes, de edifícios, de tudo, começa a ter idade e a precisar de reabilitação. Independentemente de a reabilitação ser um campo específico de engenharia, há o campo geral – faço uma reanálise estrutural, faço uma adaptação, faço uma análise de risco para ver realmente em que estado está a obra, quanto mais tempo dura e se vale a pena mexer. Mas, para isso, são realmente necessários engenheiros civis.
E como pode ser combatida esta situação?
Convencendo as pessoas de que vale a pena irem para Engenharia e as empresas que têm de fazer coisas em condições, que têm de haver responsabilidades, que têm de pensar que, se pagarem capazmente às pessoas, o retorno é muito superior porque, se não estiver interessado no seu trabalho, qual é o seu retorno?