Aires Mateus: “Não transformar o Pavilhão de Portugal no Arquivo Siza é um dos maiores erros da política cultural”
Na segunda parte da entrevista concedida ao CONSTRUIR, o vencedor do Prémio Pessoa 2017 fala dos seus modelos, das suas inspirações e critica a falta de sentido estratégico na construção do património histórico “do nosso tempo”. Parece-me que Portugal é um país que não está interessado nos seus, não está virado para aí. Podemos dizer que é uma pena. É, irreversivelmente, uma pena
Ana Rita Sevilha
CCDR-Norte apresenta Prémio Arquitectura do Douro 2024
IHG Hotels & Resorts duplica presença na Alemanha
Efacec acelera inovação na mobilidade eléctrica
Grupo Mercan reforça posição no Algarve com aquisição do Hotel Califórnia Urban Beach
Bondstone investe cerca de 70 M€ em novo conceito “rural-city lovers”
RE Capital anuncia joint venture para investimento de 66 M€ no Algarve
Seguradora AXA adquire participação maioritária de novos escritórios junto ao Colombo
ERA Portugal regista crescimento no 1º trimestre de 2024
Soluções ‘agrivoltaicas’ para um futuro sustentável
Imovendo: A proptech portuguesa que é uma imobiliária
Por altura do Prémio Pessoa 2017, disse que aquele era um Prémio para a arquitectura portuguesa. Entende esta distinção como um bom presságio?
A arquitectura tem coisas neste momento muito positivas e coisas que não o são. Há um lado claramente positivo que é a qualidade da arquitectura portuguesa. Aqui, distinguem-se as super excepções dos nossos grandes arquitectos, mas também uma massa de jovens muito boa. Temos muitos bons estudantes nas faculdades, temos muitos bons jovens profissionais com facilidade em se colocarem em ateliers internacionais, temos muitos bons jovens a criar uma arquitectura delicada, coerente e com grande qualidade e portanto penso que a arquitectura portuguesa está a passar um momento muito bom. A arquitectura portuguesa vem de uma relação com a artesania, que sempre foi boa em Portugal e que sempre conseguiu construir um ambiente muito interessante e muito forte.
Depois, o lado menos bom é que a arquitectura é uma disciplina muito frágil, porque tem muita dificuldade em explicar a sua verdadeira diferença. É necessário fazer criar uma espécie de nova busca de qualidade para que a arquitectura possa sobreviver de uma outra maneira. A arquitectura também é muito frágil porque está muito dependente de muita gente e é um processo que leva muito tempo. Ou seja, normalmente é feita, ou com redução da qualidade – porque não se pode empregar tanto tempo -, ou com um esforço do próprio para lá do razoável. Porque um bom projecto precisa desse tempo e ninguém reconhece essa necessidade.
É como se a poesia fosse sufragada. Imagine um poema de Pessoa a ir à Câmara Municipal. A qualidade arquitectónica é uma coisa frágil, muito complicada de proteger, muito complicada de garantir, muito complicada de se fazer pagar.
Na essência, a nossa arquitectura é muito boa, mas não é que a aproveitemos muito… Neste rally paper que se tornou fazer um projecto, a mediocridade navega melhor. Ou porque se vai adaptando sem grandes questões e a coisa fica “mediocrezinha”. As coisas com qualidade, afrontam, põem questões, não são tão fáceis de fazer passar.
E nós, que somos um País preocupado com o património e que nunca o tivemos em grande, porque não somos Itália, nem França, quando falamos no “belo património português” temos de saber relativizar isto. Não há um grande património português. Nós não temos um extraordinário Barroco, um Renascimento único, um Medieval incondicional, não temos nada disso e o pior é que não temos consciência de que não temos nada disso. Temos coisas interessantes, que fazem um bom equilíbrio num País muito simpático, mas não temos essas excepções. Por isso, não sei se não é um País que tem de pensar em construí-las, ou que deveria pensar em construí-las.
Não quero dizer com isto que devemos apagar os traços do passado, é muito importante deixá-los e isso é uma das características boas da cidade europeia, o saber preservar e adicionar. Hoje percebemos que preservar é tão importante como adicionar, que preservar é uma forma de construir, e isso é muito interessante e é a grande lição da Europa num mundo em transformação. Mas construir património é fundamental.
Talvez, mas fundamentalmente porque não estávamos no centro da Europa, porque não tínhamos essa cultura. Quando vamos a Itália, são dois mil anos a afinar sensibilidades. Na verdade, nós temos coisas muito interessantes na nossa arquitectura: é uma arquitectura chã, muito bonita, feita de pouco, que hoje nos dá imensas vantagens. Mas o Borromini não nasceu aqui, nem o Miguel Ângelo…
Mas nasceu o Siza e o Souto de Moura…?
Esse é o nosso tempo. É o tempo de construir esse património. Se calhar devíamos investir nisso. Mas a primeira coisa que fazemos aos arquivos do Siza, é obriga-los a sair de Portugal e ir para o Canadá. Por isso, não sei se estamos na estrada justa. Nós temos o melhor arquitecto vivo, temos hipótese de ficar com os arquivos dele – evidente que para lhes dar condições absolutamente ímpares , e nunca ninguém lhe ofereceu nada…Começámos bem? Direi que não.
Parece-me que Portugal é um país que não está interessado nos seus, não está virado para aí. Podemos dizer que é uma pena. É, irreversivelmente, uma pena. Não termos transformado o Pavilhão de Portugal no Arquivo Siza Vieira é um dos maiores erros do ponto de vista da política cultural portuguesa dos últimos anos. Porquê? Porque não somos capazes de olhar para a excepção, culturalmente nunca aceitámos a excepção. Aceitar que aquele homem foi tocado de uma forma diferente dos outros. Portugal que poderia, na verdade, se traduzir nesta centralidade da arquitectura para o mundo a partir de um gesto destes, perdeu. Os arquivos foram para o Canadá. Do Canadá irão para o Mundo? Sim, mas do Canadá. E daqui a uns anos será um belo arquitecto espanhol que tem os arquivos no Canadá. Vá lá, talvez seja Ibérico…
Concordo que a procuro, agora se lá chego… Que quero? Sim. Se chego? Às vezes.
Há dois aspectos muito importantes de se perceber. Na verdade, há esse lado da permanência da vida. Eu hoje olho para a tipologia de uma casa romana, com 2500 anos, e é uma casa pátio igual às nossas. Não me passaria pela cabeça mover-me como um romano, mas podia viver numa casa romana. A arquitectura tem esse lado muito imobilista, é talvez das coisas que menos tende a mudar. Isto é um lado da questão, há uma certa permanência nas coisas que é importante respeitar.
Há outro lado dessa resposta que é um lado cultural. A arquitectura faz-se e lê-se a partir de pontes que, de alguma maneira, são culturais. Ou seja, a arquitectura é feita de coisas que todos nós reconhecemos. Eu não posso ensinar a uma pessoa de 20 anos o que é uma porta. E a sua qualidade tem a ver com a capacidade de manipular e dar sentido a essas coisas banais. Significá-las, dar-lhes uma forma intencional. Quando desenho uma porta não escrevo “porta”, não vá alguém não saber o que aquilo é! Eu trabalho com a memória, o preconceito e a cultura de cada pessoa. Daí muitas vezes utilizarmos elementos muito arquetipais, porque as pessoas têm uma familiaridade que lhes pode fazer descobrir outras coisas. Posso ter o arquétipo de uma porta mas variar-lhe a escala. É importante jogar com um lado que é a realidade física da coisa e por outro lado, com o conhecimento que as pessoas têm da mesma coisa. Quando jogamos com estas duas coisas, ampliamos o valor que a pessoa atribui à porta.Há uma descrição que li há 30 anos, do Ferran Adrià, que uso sempre como exemplo porque foi a pessoa que melhor “vi” a descrever isto. Dizia assim: “eu cozinho de uma forma em que a pessoa reconhece aquilo que vai comer e depois descobre uma realidade que não é necessariamente exactamente a que ela conhece. Quando se aproxima amplifica-se por uma sensação e depois descobre outra. A distância entre estes dois mundos é a qualidade do que eu estou a oferecer”. Em arquitectura fazemos o mesmo. Fazemos reconhecer e depois introduzimos uma carga intencional. A distância entre essa carga intencional que é dada por um uso e a pré-concepção que a pessoa tem, define o valor. Por vezes recorremos a coisas que são chãs, vernaculares, porque é o que as pessoas conhecem mais enraizadamente. É uma cultura comum que nós temos, e que é bom usar. Agora, podemos desconstruí-la, ampliá-la, distorcê-la, mas partimos de uma base de entendimento.
Há muitas coisas, ao mesmo tempo, que eu penso sobre o documentário. A primeira coisa é que é um trabalho exterior ao meu trabalho. É um pensamento de alguém sobre o meu trabalho. Como alguém que escreve um texto crítico. Digo isto porque me dá imensa liberdade. Eu só vi o filme quando estreou, exactamente porque para mim tinha de ser entendido dessa maneira, como uma coisa que me era exterior, era uma visão.
O que me interessa mais naquele filme é, para além dessa visão exterior, e das críticas que podem fazer movimentar o meu trabalho, de haver movimento, da coreógrafa e bailarina contemporânea Teresa Alves da Silva. De haver uma utilização com o corpo, a partir da arquitectura. E aí que acho que o filme introduz um nível diferente. Esse medir o espaço através do corpo. Depois também fiquei contente porque acho que o filme tem uma capacidade boa de comunicação para um público generalista.
O que é que lhe serve de inspiração?
A Arquitectura é influenciada por tudo, tem essa vantagem. Influenciada por coisas muito próximas de nós, influenciada pela vida. Depois a Arquitectura é também muito influenciada pelas Artes. Há uma precisão na Arte que é muito interessante para a Arquitectura. Quando olhamos para uma peça do Richard Serra, percebemos que aquilo é exactamente aquilo ou não é nada. Na Arquitectura, como é muitas vezes confundida com a construção, essa percepção perde-se. Pode-se viver e ser feliz numa casa mal desenhada. A Arquitectura perde-se muitas vezes e inveja essa capacidade da Arte de ser muito precisa. Portanto, acho que há um lado na arquitectura que é muito abrangente e por isso pode ser influenciada por qualquer coisa: tecnologia, economia, pela vida em conjunto, pela política… por coisas que são muito reais. A mim interessa-me muito as influências artísticas, porque acho que procuro dialogar com elas no lado do ganho de liberdade. Gosto muito do trabalho de muitos escultores, e são pessoas com quem eu gosto de dialogar porque de alguma maneira estudam dimensões da nossa percepção que são importantes para a arquitectura, mas trabalham com elas muitas vezes com fórmulas muito directas. O problema da descodificação da arquitectura é que ela responde a muita coisa ao mesmo tempo, e algumas artes respondem a coisas muito mais precisas e portanto permite-nos aí usar uma arte para discutir com ela.Por exemplo, quando o Daniel Malhão fotografava para nós, introduziu no atelier a presença dos fotógrafos e então começámos todos a ver fotografia e a usar a fotografia para coisas que não eram reproduzir o nosso trabalho, nomeadamente como forma de pensamento. Outro exemplo, uma coisa para mim evidente, quando trabalhei na Irlanda, foi que percebi Dublin através da visão de fotógrafos, não percebi Dublin pela minha visão. Eu precisei da visão de outro. Muitas vezes os artistas dão-nos isso. A Arte dá-nos pontos de vista. Há sempre na Arte, uma forma de representação, que às vezes é tão acutilante, que ajuda imenso uma visão de um arquitecto.Depois, como é óbvio gosto muito de arquitectos. Vivos, a capacidade formal do Siza e a capacidade de desenhar espaços a partir da possibilidade do uso dos espaços, desenhar espaços em movimento. Isso é que me descodifica o Siza. E há outro lado no Siza, que talvez nunca tenha falado e que adoro, que é um lado verdadeiramente crítico: o Siza é capaz de fazer o projecto mais holandês na Holanda, o mais belga na Bélgica, o mais italiano em Itália, há um lado de compreensão do Mundo muito crítico que é muito interessante. Depois, gosto muito do Peter Zumthor, porque visitei as obras dele e porque o vi dar aulas e fiquei com muito respeito pela forma como o fazia. Gosto muito do trabalho dele, da ideia de uma procura por uma arquitectura mais total, uma arquitectura muito envolvente, que se termina no enraizar da vida. Eu acho muito forte. Depois, o Francesco Borromoni, um homem da liberdade formal e do Barroco e o Andrea Palladio pela capacidade de ser muito rigoroso e pela consciência espacial.
E depois há as arquitecturas clássicas, que são para mim uma espécie de pano de fundo, os egípcios, os gregos, mas acima de tudo a súmula romana destas influências. E serve-me de inspiração a vida, influencia-me todos os dias.
Voltando à escultura, a arquitectura pode ser uma escultura habitável?
Eu detesto a distinção. E tenho muita dificuldade em ver a diferença. Qual a diferença entre escultura e arquitectura? A escultura não se habita e a arquitectura habita-se. Quando convencionamos que é uma escultura é uma escultura, quando convencionamos que é uma arquitectura, é uma arquitectura. O que distingue a arquitectura é essa necessidade de ser habitada e o facto de se completar aí. Agora, começam a haver coisas que são quase híbridas. Há lugares em que nós já estamos a tocar uma coisa e outra, embora eu ache que as devemos distinguir, porque há um propósito diferente e esse propósito é importante.A escultura deve ser uma coisa finita em si, a arquitectura não. Penso que a Arquitectura tem de ser aceite como uma Arte, porque senão o que nós fazemos é absurdo. E ainda bem que é uma Arte porque só a Arte nos pode motivar. E as pessoas têm de ser motivadas no espaço público e no espaço privado, o espaço tem de ser uma possibilidade de educação para as pessoas, tem que ser usado. Nós raras vezes estamos expostos a pintura, mas à arquitectura somos expostos constantemente, por isso a arquitectura tem de ser boa, tem que ser uma Arte que nos motive, que nos acrescente. O drama da arquitectura é que está muito perto de uma coisa corrente. Toda a gente sabe construir uma casa, agora dar-lhe um significado, só alguns. Mas não são os arquitectos, é a arquitectura. O que não é bem a mesma coisa.Fotografias: Frame It