Entrevista a Manuel Aires Mateus: “A cidade é o lugar de todos, não é o lugar de uns”
Foi num novo atelier, no Príncipe Real, que Manuel Aires Mateus recebeu o CONSTRUIR. Distinguido com o Prémio Pessoa 2017, o arquitecto acredita que a Arquitectura Portuguesa atravessa uma fase muito boa, contudo, sublinha: “a qualidade arquitectónica é uma coisa frágil, muito complicada de proteger, muito complicada de garantir, muito complicada de se fazer pagar”
Ana Rita Sevilha
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Manuel Aires Mateus: As fases boas do atelier são quando temos projectos com os quais estamos verdadeiramente emocionados. Existem fases em que estamos muito contentes com o trabalho e com a produção e esta é uma delas também. Essas são as fases mais interessantes, são quando percebemos que as coisas, de alguma maneira, resultam, se coordenam e se montam. O atelier, neste momento, está estável, tem trabalho com continuidade e estabilidade. Esta fase corresponde também a uma mudança de instalações, que veio obviamente dar um alento ao atelier, porque no antigo escritório, embora gostássemos muito dele, tinha um problema: ou havia luz a mais ou havia luz de menos. Esta vinda para aqui, para o Príncipe Real, trouxe uma luz boa, controlável, temos espaço exterior e tudo isso acabou por dar também alento. O atelier está também cada vez mais organizado e por isso a produção está facilitada.
O único “defeito”, neste momento, é ter tendencialmente mais trabalho fora do País do que dentro. Não é que o trabalho fora tenha algum problema, mas estamos habituados a ter qualidade de construção e eu acho que Portugal ainda é o país onde se constrói melhor. Eu gosto disso.
Depois, prefiro trabalhar em Portugal porque tem predisposição para temas que me interessam, nomeadamente as Casas. Mas, depois, também faltam programas culturais como os museus, os auditórios… Com a redução do investimento público, deixou de haver encomenda de equipamentos, ou pelo menos encomenda a nós. E esse tipo de programa temos vindo a fazer mais fora do País.
Ao nível dos programas, e partindo do princípio que equipamentos culturais ou com essa dimensão não haverá muitos num futuro próximo, é expectável que alguns equipamentos que se tornem obsoletos possam dar origem a novos programas? E existindo é um tipo de trabalho que lhe interessa?
Tudo isso acontecerá, mas em Portugal não estamos no momento de investimento em infra-estruturas. Não estou a dizer com isso que é bom ou mau, simplesmente não estamos nessa fase. A nós, o trabalho que nos interessa sempre mais são as Casas. Depois, há outro trabalho que nos interessa e que está relacionado com o estudo tipológico. São temas que podem ser interessantes de se fazer por cá.
Mas tipologias em habitação?
Sim, em habitação multifamiliar. Quer dizer, uma coisa é esta tipologia normal, outra é a possibilidade de investigar coisas novas.
Repare, não há nada mais conservador do que a forma como vivemos e a arquitectura é muito conservadora nisso. Mas há, no entanto, algumas possibilidades na maneira de olhar para o aspecto tipológico que neste momento nos estão a interessar. Estamos a começar a olhar para projectos com tipologias diferentes, com ocupações de espaço ligeiramente diferentes e isso é uma parte do trabalho que nos interessa muito.
Essas possibilidades de estudo e investigação ao nível das tipologias é o que o seduz tanto no programa das Casas?
São duas coisas. Uma é essa possibilidade de grande investigação sobre a vida. A casa é sempre o que está mais perto da vida das pessoas e o projecto pelo qual as pessoas se interessam mais e estabelecem uma grande ligação.
Depois, o que nos interessa muito nesse programa são as pessoas, que é o que faz com que cada projecto seja diferente. Não há dois projectos iguais porque não há duas pessoas iguais e, de alguma maneira, essa possibilidade amplifica a investigação do projecto. Portanto, tem sido esse o fio condutor para nós.
A propósito disso, li uma declaração sua que dizia que “a arquitectura é uma arte expectante que só se completa com a vida”. Pode-se então dizer que a arquitectura é a criação de vazios para que essa vida aconteça?
Sim, mas vazios possíveis. Estamos habituados a viver em vazios pouco qualificados. Aliás, estamos muito habituados a confundir construção com arquitectura. O que há corrente é construção, não é arquitectura. A arquitectura é um significado da construção. E eu atribuo muito à arquitectura essa ideia da liberdade e da possibilidade, ou seja, de desenhar espaços que possibilitem liberdades de apropriação, que é aquilo que dá bem-estar dentro de um espaço, porque permite a uma pessoa se ampliar nessa utilização.
Existem exemplos clássicos na história: o Convento que dá origem a Hospital, a Universidade, a Hotel ou ao que for e é sempre o mesmo na sua essência. Percebemos que ali há uma grande liberdade expectante, há uma inteligência tipológica e uma ideia sobre a vida que permanece.
Depois, temos do outro lado uma espécie de uma arquitectura funcional. O Mundo não se coaduna com a ideia de que estabelecemos um programa e cinco anos depois esse programa se mantém. Acho que os espaços devem, naturalmente, adaptar-se com uma grande generosidade às mudanças. E isso é que eu acho que se liga muito à qualidade da arquitectura, porque de facto a arquitectura necessita desse fecho.
Por exemplo: isto é muito interessante quando se desenha um museu, porque existe sempre a discussão sobre se um museu deve ser determinante, para se impor, ou se deve de ser muito expectante. A arquitectura deve ser muito expectante impondo a sua própria vontade, duas coisas que não acho que sejam contraditórias. Acho que há arquitecturas que são determinadas e com um forte carácter, mas que deixam que essa liberdade de apropriação se dê.Os museus que os artistas gostam, são museus que permitem que eles completem o espaço com uma certa segurança e que o espaço na verdade não os condicione.
Mas eu acho que isto tanto é válido para o museu como para o quarto. Não tem que ver com tamanho nem com riqueza, tem que ver com liberdade.
O exemplo que eu acho mais claro sobre isto são as casas de habitação social em Évora, do Siza [Vieira]. Sobre elas disse: “nós estamos em áreas mínimas, o quarto só serve para dormir, a sala serve para colocar uma mesa de refeição e para ver televisão, na cozinha só se cozinha, então eu alargo o corredor e esse é o meu espaço de liberdade”. Esse alargar do corredor, tipologicamente, transforma esta tipologia em arquitectura, porque permite que aquela casa seja aberta aos usos. Isto não tem que ver com a escala, tem que ver com a liberdade de apropriação.
Mas esse equilíbrio é difícil de encontrar, nomeadamente porque há programas muito definidos…
Mas os nossos problemas começam nos programas. Nós imaginámos que a vida é funcionalista. Podemos pegar como exemplo na cidade de Lisboa. Todos nós sabemos o que é que gostamos na cidade de Lisboa e depois, quando estendemos a cidade de Lisboa, estendemos uma cidade funcional, muito pouco interessante. A cidade que gostamos sobre ela não investigamos. Não vejo ninguém a pensar na verdadeira escala humana, por exemplo, das ruas à volta da Sé, das escadinhas da Mouraria…ninguém reflecte sobre qualidades que nós, todos, encontramos na cidade. Quando fazemos a cidade, fazemo-la funcional e sem interesse nenhum. Nós, na verdade, que devemos com a arquitectura responder à vida, estamos a ignorá-la em ordem de uma espécie de funcionalização da mesma.
Estamos quem?
Todos, a sociedade, ninguém se escapa disso. Ainda não foi possível reflectir sobre isto…
Por falta de tempo?
Não, por falta de inteligência. Na verdade, não queremos ir viver para essa cidade. Eu posso dizer: gosto muito do passeio largo. É uma coisa para pensar. Mas eu não o substituo, por nenhuma condição, pela cidade histórica, mas não é só porque ela é histórica, é porque ela tem a escala da minha vida.
A arquitectura, durante um tempo, tomou o Homem como medida no desenho. Hoje é medida nas regras. Imagine qual é a surpresa que nós temos quando sabemos que todos os corredores de todas as casas no nosso País, têm 1,10cm. Nós podemos arranjar coisas mais aborrecidas para fazer na vida, mas é difícil. Portanto, estamos a retirar à arquitectura aquilo que seria a poética da espacialidade, uma condição de instrução de qualidade de vida, que nós cerceamos.
E como é que se contorna isso?
Primeiro entendendo que a legislação tem de ter outro grau de elasticidade. A legislação é muito importante no sentido da protecção, nomeadamente proteger da especulação. Temos de proteger de uma especulação que é obviamente muito violenta na construção. Há que normalizar mínimos para proteger as pessoas. Mas não podemos ficar cerceados por estas leis. Se eu estou a fazer um bloco de apartamentos, as regras fazem sentido, mas se estou a desenhar uma casa para um homem de grandes posses, não faz sentido nenhum. Estou a desenhar a casa para ele. As coisas não são todas iguais e a nossa legislação é cega e tem de ganhar elasticidade.
A única coisa que foi bem legislada, nos últimos anos, foi uma pequena lei que dizia: “no caso de ser recuperação, desde que justificado e não piore as condições, os parâmetros não têm de ser todos cumpridos”. É de uma inteligência enorme esta lei, porque relativizou os parâmetros. Devemos pensar na qualidade que esta lei introduziu.
Não podemos continuar a viver amarrados a uma espécie de mediania. A mediania é necessariamente medíocre porque não serve ninguém. Não há pessoas medianas, todas as pessoas são diferentes. E, no entanto, a coisa mais divertida é que o colectivo das pessoas não tem uma especial apetência por essa funcionalização. Tem por outras coisas que nós não lhes podemos dar porque estamos a cercear. Vamos ter muito que reflectir…
Falava há pouco da cidade de Lisboa. Como arquitecto e habitante da cidade, como olha para este rápido desenvolvimento, para o turismo, para a especulação imobiliária…
Estamos num momento que pode ser encarado por duas perspectivas: um dos lados desta invasão é um lado obviamente positivo, relacionado com a dinâmica da cidade e o facto de se ter reabilitado em bloco. Depois, há um outro lado, complicado, que é não respondermos aos problemas que isto cria. Ou seja: com a especulação, conseguimos recuperar a cidade, mas também conseguimos expulsar os lisboetas. Agora, não são as mesmas pessoas que têm de responder aos dois lados da questão. Quem especula, especula. Um legislador resolve o problema desta coisa desenfreada. Temos de responder rapidamente à cidade pelos lisboetas. Uma pessoa com 25 anos, que acaba um curso, começa a trabalhar e que tem um ordenado expectável, que é o nacional, tem de ter uma resposta para a casa, em Lisboa. Porque a resposta não pode ser: “pode viver noutros sítios”. Temos de encontrar outra resposta.
Comparamos muito esta “invasão” com o que aconteceu em Paris, nos anos 80 e 90, quando metade da cidade foi comprada pelos árabes. Só que Paris é uma cidade de 11 milhões, não é de meio milhão, é vinte vezes maior do que Lisboa, logo não é comparável. É uma cidade com outras possibilidades de fuga que nós não temos.
Isto é muito complicado. Por um lado, temos esta ideia de funcionalização dos Airbnb, e outros, que aumentam o valor das casas em aluguer. Depois, o preço da casa de aquisição, à luz de um mercado e uma economia que vem de fora, logo mais pujante que a nossa. Acresce ainda a desfuncionalização dos impostos entre os países europeus, em que nós temos as nossas empresas a irem pagar impostos à Holanda, e as francesas a não virem pagar impostos a Portugal. Tudo isto dentro de uma Europa Unida, é uma coisa absurda. Portanto, tudo isto está a criar fenómenos que por sua vez criam um gigantesco problema.
Agora, o problema não se põe na questão: “então mas não podemos ter turistas?”. Não é isso que está em causa. Tem é de se analisar os problemas que isso causa e resolvê-los.
Mas até então não houve respostas, apenas alguns movimentos e alguma pressão…
Mas é mesmo preciso arranjar soluções. E as soluções têm que ver com o poder legislativo, a todos os níveis. Isto é um problema de governação.
Não existindo essas respostas, que grandes problemas podemos vir a ter de enfrentar de futuro?
Se não houver respostas, deixa de haver lisboetas em Lisboa. Ou só há lisboetas ricos. Isto não faz qualquer sentido, mesmo do ponto de vista moral. Isto é amoral. Do ponto de vista da funcionalidade, é o pior que nos pode acontecer porque voltamos a ter os problemas derivados de as pessoas viverem fora e virem trabalhar para Lisboa que é o que nos batemos sempre contra. Ficamos com uma cidade cheia de lojas e de passeantes e uma população que vem cá servir. Não sei em que País é que nos queremos tornar…ou em que cidade é que nos queremos tornar. Mas não é esta.
E há vários exemplos semelhantes que falharam…Faltam arquitectos na política?
Falta inteligência na política. Falta clarividência. Isto já aconteceu em Veneza, Barcelona, Paris, Londres…do que é que estão à espera? Que não aconteça aqui? Vai acontecer. Aconteceu no Algarve e deixámos acontecer uns anos depois na Madeira, e deixaremos agora acontecer nos Açores. Mas porquê? E se calhar ainda conseguimos estender esse modelo maravilhoso à Costa Alentejana. Toda a gente sabe, toda a gente está a ver o que está a acontecer e ninguém faz nada.
Cada um de nós tem o seu trabalho, não vamos inverter as coisas. O meu trabalho é fazer projectos, quem tem que legislar, legisle. Pense nisso! Querem ajuda? Podemos falar sobre isso. Mas há aqui uma grande permissividade na nossa relação com o poder.
E a falta de gestão do território? No ano passado foi perfeitamente evidente da pior maneira. Mas depois, parece que estamos a falar de um assunto que não tem interesse nenhum. É dos primeiros assuntos a tratar. Toda a gente percebeu, por esses exemplos dramáticos, mas continuamos com ar de quem acha que o importante é o PIB.
Isto não é uma crítica a quem governa agora, porque isto é um problema de sempre, nunca houve uma política que não fosse absolutamente casuística, irreflectida e seguidista. E não é preciso ser arquitecto para perceber isto. Qualquer pessoa percebe.
Agora, isto vai gerar um problema arquitectónico? Sim. Então chamem-se os arquitectos. Mas antes de mais, é preciso esclarecer muito bem esta vontade de resolver um problema que a breve prazo é terrível. E atenção, a inversão de uma política destas leva muitos anos.
A cidade é o lugar de todos, não é o lugar de uns. Isso é o que define uma cidade.
Mas isso poderá também derivar de um problema cultural, das próprias pessoas que não apreendem a cidade como delas? E por isso também não discutem as questões da cidade?
As pessoas não têm a participação cívica que deviam de ter, podem até tender a ter essa consciência, mas não nos enganemos, isto não tem de ser uma preocupação das pessoas. É errado esta ideia de que as pessoas têm que se preocupar. As pessoas votam, pagam a outras pessoas para tratar destes assuntos. Então tratem-nos. Nós pagamos salários a pessoas para legislar, para pensar e tratar destes assuntos. Tratem. Eu levanto-me de manhã e tenho coisas para fazer, mas não essas. Agora há pessoas que têm essas. São pagas para isso. Tratem delas.
Na verdade, não há muita inteligência nisto tudo. O próprio processo não é inteligente. Há um problema, toda a gente o conhece, há pessoas pagas para tratarem do assunto, tratem! Agora, a quem quiserem pedir ajuda, peçam. Estamos cá para ajudar.
Tudo se reequilibra, mas não é o equilíbrio que se quer. Veneza não deixou de ter gôndolas, não tem é habitantes…não sei se é este equilíbrio que queremos.
Fotografias: Frame It