Autor do Terminal de Cruzeiros de Lisboa e do recentemente inaugurado Campo das Cebolas, Carrilho da Graça tem em itinerância uma exposição comemorativa dos seus 30 anos que reflecte a visão que tem da cidade que o acolhe. Em entrevista ao CONSTRUIR lembrou que a Área Metropolitana de Lisboa centrada no Estuário do Tejo “é muito mais interessante”
Está sedeado em Lisboa, uma cidade marcada por intervenções suas e tem ainda em itinerância uma exposição que foca a visão que tem da cidade onde trabalha há mais de 30 anos. É inevitável por isso pedir-lhe que nos conte o que vê quando olha para a Lisboa de hoje?
João Luís Carrilho da Graça: A Lisboa de hoje parece-me entusiasmante. As mudanças que se iniciaram já há alguns anos continuam a desenvolver-se, naturalmente com aspectos positivos e aspectos negativos aos quais é preciso dar atenção. Em geral a cidade está a transformar-se de uma forma bastante consistente.
Relativamente à questão da habitação em Lisboa, disse em tempos que se olhássemos para a Área Metropolitana de Lisboa e não só para o centro da cidade, seria muito mais interessante.
A Área Metropolitana de Lisboa tem entre 2,5 milhões e 3 mihões de habitantes e Lisboa tem pouco mais de 500 mil. Se olharmos para a Área Metropolitana centrada no Estuário do Tejo, há uma globalidade que parece muito mais interessante do que olhar só para a cidade e os problemas que ela tem. Se olharmos para o conjunto, abrem-se uma série de perspectivas e possibilidades de futuro que são bastante incríveis.
Acha que a falta de habitação em Lisboa pode não ser uma questão?
O problema principal é a qualidade da habitação. Há uns anos estava a falar com um colega francês – Jean Philippe Vassal – e ele contava-me que tinha sido convidado pela Região de Poitiers para estudar hipóteses de habitação sem seguir regulamentos. Muitas vezes os regulamentos e os hábitos acabam por limitar as possibilidades de encontrar soluções verdadeiramente intensas.
Falta elasticidade nos regulamentos?
Falta uma certa elasticidade e por outro lado, há naturalmente neste momento um ataque furioso dos turistas e novos residentes em relação a Lisboa, que faz com que muitos habitantes se sintam excluídos do centro da cidade. É preciso combater essa “gentrificação”, com a promoção pública de habitação social e não-social, comum e de qualidade, dentro deste espaço que é a Grande Lisboa.
Como disse anteriormente, vê o Estuário do Tejo como uma área interessante e, aliás, explora-a com regularidade a nível académico. O que é que lhe falta para se tornar apetecível?
A zona é extremamente apetecível. Repare, o arqueólogo Cláudio Torres chama ao Estuário do Tejo o “nosso pequeno mediterrâneo” e se olharmos para o que já existe percebemos que é extremamente interessante e que não é difícil estabelecer novas ligações e tornar tudo mais interactivo.
Está a falar de uma rede de transportes?
Não sei se é uma rede de transportes, mas imagino que possam criar-se mais ligações fluviais, pôr tudo o que existe a funcionar. Passa pela criação de uma série de regras que tornem tudo mais acessível.
Voltando ao centro da cidade, Lisboa está a reabilitar-se em bloco mas parece que na palavra Reabilitação cabe um pouco de tudo. Onde começa e acaba a Reabilitação?
Qualquer intervenção em que as condições dos edifícios, das áreas da cidade e do espaço público melhoram, pode ser considerada Reabilitação. Pode ser necessário estabelecer prioridades em relação a investimentos. Os privados definem as suas prioridades e o público – quer o Governo quer a Câmara terão de as definir também.
Mas Reabilitação e Regeneração tratam a mesma coisa?
Podemos reabilitar o construído sem regenerar a cidade…Regenerar é repor em funcionamento qualquer coisa que já teve uma certa vitalidade. Reabilitar pode ser só reconstruir edifícios de uma forma mais ou menos correcta, mas sem ter em linha de conta as possibilidades de utilização e de transformação que isso possa implicar.
No projecto para o Campo das Cebolas reintroduziu materiais que foram encontrados durante as escavações. Para além do lado histórico existe, neste caso, um prolongamento do ciclo de vida dos materiais. Esta é uma ideia/conceito que lhe faz sentido?
Sim. Sempre que fazemos qualquer intervenção estamos a partir de uma situação dada, com uma série de existências e a transformá-la. Esse processo de transformação, pode ter uma aparência radical, mas prefiro que seja mais suave, que se consigam incorporar elementos que já existem – pedras, sítios, ideias -, e transformar só o que é necessário. Foi isso que aconteceu!
Assusta-o – por exemplo no caso do Terminal de Cruzeiros que é uma obra com grande visibilidade e uma porta de entrada na cidade – a ideia de ser um objecto que se vai estender no tempo, ficar, envelhecer, estar associada a uma mudança na cidade. É um acto de coragem assumir um compromisso destes?
Sim, é preciso ter coragem para ser arquitecto de uma forma geral. Neste caso concreto, quando as obras são antecedidas de um Concurso Público Internacional, quando, como neste caso, o projecto tem a unanimidade do júri e depois ainda se prolongou no tempo a sua conclusão, tudo isso criou um período dilatado durante o qual as imagens dos edifícios foram publicadas e estiveram expostas. Portanto houve a possibilidade de existirem críticas e pontos de vista diferentes durante esse tempo, durante a obra e agora desde que terminou. E na verdade não apareceram grandes críticas o que me deixa relativamente descansado. Se aparecessem teria de as enfrentar. Creio que a recepção corresponde a uma certa consensualidade. O aspecto que preocupa mais toda a gente desde o princípio e a mim também, mas transcende um pouco o que os arquitectos podem fazer, é o impacto no trânsito naquele ponto que já tinha problemas antes. No entanto, esse é um problema genérico da cidade que não se resolve ali especificamente. O Terminal de Cruzeiros de Lisboa é uma obra feliz, desde o concurso pensei o projecto em nome da cidade em vários aspectos. Foi o edifício mais pequeno a aparecer no concurso –cingi-me ao programa que estava em cima da mesa -, era o que tinha menos áreas climatizadas – as pessoas sempre que possível saem para o exterior, o que torna o edifício mais leve em termos energéticos -, desde o princípio que a proposta era a de que fosse enquadrado num parque urbano verde tão público quanto possível e contempla também dois aspectos que acho interessantes: um percurso público autónomo até à cobertura, que funciona como um miradouro do qual se pode desfrutar uma vista maravilhosa. A meio caminho desse percurso, uma cafetaria com uma esplanada. Estes pontos e um certo comedimento volumétrico em relação à cidade, que não corta vistas instituídas e que tem uma presença relativamente discreta, que não se impõe excessivamente, resultou muito bem.
Foi também um projecto onde ensaiou uma nova solução construtiva.
Sim, o betão com cortiça.
Já tinha pensado nesta possibilidade por outras razões, porque queria construir edifícios em betão de forma que tanto no interior como no exterior se pudesse ver o betão. Para isso, o betão tem de isolar termicamente e esta adição da cortiça permite fazer isso. Para além disso, este betão é estrutural, tem uma resistência bastante razoável e tem capacidade de isolamento, o que permite fazer esse tipo de edifício. A ideia de explorar o betão surgiu, mais concretamente, porque os engenheiros de estruturas chegaram à conclusão que as duas fachadas – do lado do rio e do lado da cidade-, tinham de ser aligeiradas e eu nunca tinha imaginado que o edifício pudesse ter essa “fragilidade”. As fundações já estavam feitas quando foi lançado o concurso e estavam no limite de carga. Então pensei que era bom tentar encontrar um betão que fosse mais leve e que permitisse dar rigidez estrutural àqueles dois alçados, dentro da capacidade de carga que as fundações já tinham. Este betão tem 40% menos de massa e imensa resistência.
É importante essa experimentação em projecto?
Eu já fiz várias avarias deste género, mas não é uma coisa que procure, acontece quando acho que é importante do ponto de vista do projecto. Em 1995, quando comecei a fazer o projecto do Pavilhão do Conhecimento, não existiam praticamente edifícios em betão branco à vista e na altura muita gente dizia que era uma loucura estar a fazê-lo. Mas achei o desafio interessante e está impecável do ponto de vista do betão. Ninguém acreditava que o betão se iria manter com aquele aspecto durante 20 anos.
O que é que lhe agrada tanto no betão?
É muito difícil fazer um reboco decente, normalmente caem. A imagem que temos das construções de meados e princípios do século passado é bastante má porque já conhecemos os edifícios com os rebocos caídos, sempre achei isso uma grande fraqueza. Então pensei que se não houvesse reboco, seria uma forma mais sólida e directa de construir. Mais tarde descobri um material que é uma espécie de estuque para exterior que usei muitas vezes – por exemplo no plano suspenso do Palácio de Belém -, que realmente é um material extraordinário e que ultrapassa essas dificuldades, o que desdramatizou a questão do reboco. Sempre quis fazer edifícios relativamente simples, quase pele e osso, a estrutura interessa-me sobremaneira e procuro-a completamente visível ou revestida, mas de uma maneira que seja durável e não muito dispendiosa.
Pegando no Pavilhão do Conhecimento de que falou, assinala-se este ano os 20 anos da Expo’98. Um projecto considerado “uma reabilitação urbana sem precedentes em Portugal” e uma “referência internacional”. Do ponto de vista urbanístico, acha que evoluiu bem?
Acho que sim, que está em desenvolvimento e tem uma grande capacidade de atracção. A continuidade que existiu entre a Expo’98 e o período posterior é, caso único. Acho que é um êxito.
E comemoram-se também os 10 anos do Museu do Oriente…
É verdade. O projecto não é completamente meu, a obra já estava a decorrer e eu participei no concurso para que fui convidado para a zona museológica e depois pediram-me ajuda para equilibrar tudo e, chegar com a obra, que estava um pouco atrasada, a bom porto. Devo dizer que foi um projecto que gostei muito de fazer, mas não posso dizer que foi em todos os casos um projecto e uma obra minha.
A zona das exposições acho que resultou muito bem, com uma série de decisões que foram ao encontro do que existia e não se podia por em causa, e que no fim potenciou tudo.
A primeira vez que lá fui, antes da intervenção, parecia que estava a visitar um subterrâneo, porque não tem janelas e era muito misterioso, os espaços, que tinham sido câmaras frigoríficas, estavam todos revestidos de cortiça. Era muito intenso! Consegui manter a atmosfera que valoriza a visibilidade dos objectos e obras de arte.
Em 2008 venceu o Prémio Pessoa e este ano – dez anos depois – foi entregue a Manuel Aires Mateus. O facto de a Arquitectura voltar a ser reconhecida com um prémio que é atribuído pela sociedade, é um bom sinal?
Na altura em que recebi o Prémio, disse precisamente que ficava particularmente feliz por sentir que era uma distinção dada pela sociedade, representada no júri e isso é muito positivo. Por um lado é importante a relação com a sociedade, mas também o que os arquitectos pensam uns dos outros. São apreciações entre pares! A sociedade é sempre o objectivo final.
A Arquitectura é um reflexo político, social e económico de um País. À luz disso o que se pode dizer do Portugal de hoje?
Hoje Portugal está na moda, recebe inúmeros prémios e em muitos aspectos está na vanguarda. Esperemos que isso se verifique também em relação à arquitectura.