Quase uma década é o tempo que leva o projecto de Assentamento Biológico da ilha de Santo Antão, a ilha mais a norte do arquipélago de Cabo Verde. O projecto financiado pela agência de turismo alemã tomou várias formas e usos, antes de chegar ao que é hoje.
Localizado na parte norte da ilha, exposta aos ventos oceânicos, o Assentamento Biológico está localizado entre as aldeias de Cruzinha da Garça e Chã de Igreja.
Nesta encosta montanhosa foram projectados e construídos cerca de três hectares de área cultivável, 14 quartos duplos, quatro vilas, edifício de serviços, restaurante e lounge, edifício panorâmico multifuncional. A energia do empreendimento é proveniente de um campo fotovoltaico e três depósitos de água servem para irrigação e a piscina.
Um projecto fruto de um diálogo permanente entre promotores e gentes locais, mas também com a tradição, no qual a Arquitectura deu voz às aspirações das várias partes.
Santo Antão está localizado no meio do Atlântico, a cerca de 500 km do Senegal. A ilha vulcânica e montanhosa, habitada desde meados do século XVI por uma mistura de agricultores portugueses, judeus expulsos e descendentes de escravos deportados da África. Uma população que resiste às dificuldades naturais, tal como as outras ilhas do arquipélago cabo-verdiano tem uma produção agrícola insuficiente, ao clima e à vontade de partir dos seus jovens.
Por isso um projecto que originalmente tinha um cunho meramente residencial, ganhou impulso com um vínculo também turístico, criando uma actividade que emprega quem ali vive, para lá do momento da construção. O vínculo agregador do projecto trouxe também a componente de subsistência agrícola, capaz de alimentar a componente hoteleira e de criar excedente para a ilha. Aproximadamente 20 pessoas das aldeias vizinhas foram empregadas na construção de cinco km de terraços, que transformaram cinco hectares de área seca, abandonada, em três hectares de área plana, cultivável e irrigada, que produzem frutas e vegetais. “Cabo Verde é um país com produção agrícola insuficiente. Por essa razão, o nosso objectivo foi utilizar toda a superfície possível da área disponível, tornando-a irrigada e adequada para cultivo”, explicam os seus arquitectos.
Integração e respeito pela tradição
A TRAÇO falou há alguns meses com Eloisa Ramos e Moreno Castellano, ela cabo-verdiana ele italiano, os arquitectos responsáveis pelo projecto, num trabalho já aqui publicado (Edição 510). Uma conversa que versou, também pelo papel e responsabilidade da arquitectura no desenvolvimento da sociedade e da consciência do local, do social, da história e das gentes na arquitectura que esta dupla desenvolve. “Vemos a arquitectura como uma manifestação da vida, os projectos nascem das necessidades e muitas vezes tentamos que a arquitectura contribua para a resolução de problemas da sociedade”, explicou-nos então Moreno Castellano.
O Assentamento Biológico da Cruzinha, Santo Antão, é mais um exemplo da “arquitectura consciente” e sustentável que já é um traço comum do trabalho de Eloisa Ramos e Moreno Castelhano.
E como é que isso se manifesta? “Nas escolhas e decisões que fazemos. Em vez de usar o material importado, por exemplo, utilizamos o material local, em vez de usar técnicas que ocupam poucos trabalhadores, usamos as que precisam de mais mão-de-obra. Há aqui múltiplos aspectos”. No Assentamento Biológico da Cruzinha as escolhas recaíram no “uso de materiais locais, como pedra basáltica, areia e cascalho, utilizados para construir paredes e telhados; o uso de mão de obra local e técnicas de construção comuns na área, combinadas com soluções e tecnologias simples, mas contemporâneas”, por exemplo.
Acresce ao caracter sustentável do projecto a criação de uma dessalinizadora, que é alimentada por energia produzida pelos painéis fotovoltaicos que servem o empreendimento. Esta central fornece água a todos os edifícios equipados com sistemas de filtragem e reutilização de águas cinzas. Através de um sistema de gotejamento por gravidade, essas águas irrigam a vegetação circundante.
Esculpir a montanha
Entre as escarpas e montanhosa costa da ilha de Santo Antão encontramos o Assentamento, que surge quase como que um oásis. “Os pontos protegidos dos ventos fortes e constantes, fora da rota de deslizamentos de rochas e com vista para o vale ou para o mar, determinaram as posições mais favoráveis para as casas e quartos, integrando o projecto na montanha como uma vasta obra de arte ambiental”.
Nada aqui foi deixado ao acaso, incluindo o seu mobiliário. “Todos os interiores e móveis, projectados pelos arquitectos Ramos Castellano, foram confeccionados por artesãos de oficinas locais.”
“A vegetação que permeia o ambiente, cobrindo telhados-jardim, paredes e terraços, cria caminhos multissensoriais que constroem uma relação íntima entre a natureza e os visitantes, e realizam uma utopia: um novo assentamento rural, oposto à forma predominante de turismo neocolonialista que invade as ilhas, e que propõe uma solução de cooperação, benefício mútuo e troca justa”, justificam os seus arquitectos.
BI
Ramos Castellano
Eloisa Ramos é natural de Santo Antão e Moreno Castelhano da Sardenha. Cabo Verde é casa e campo de experimentação de uma arquitectura “consciente”, do local, das suas necessidades, e sustentável, premendo a reutilização dos materiais e o uso de energias limpas.
De entre os vários projectos já concluídos por esta dupla constam unidades hoteleiras (Aquiles Eco Hotel, Terra Lodge Hotel), residenciais (Casa Celestina) e culturais (Centro Nacional de Arte, Artesanato e Design)