Opinião

Uma alteração e muitas questões – Avaliação de Impacte Ambiental

“A alteração proposta ao regime do deferimento tácito é questionável, quer no cumprimento com a “Diretiva AIA”, quer na compatibilidade com o nosso ordenamento jurídico e até na sua verdadeira utilidade para os particulares”

Diogo Nogueira Gaspar
Opinião

Uma alteração e muitas questões – Avaliação de Impacte Ambiental

“A alteração proposta ao regime do deferimento tácito é questionável, quer no cumprimento com a “Diretiva AIA”, quer na compatibilidade com o nosso ordenamento jurídico e até na sua verdadeira utilidade para os particulares”

Diogo Gaspar
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Diogo Gaspar

Foi publicado e submetido a consulta pública, no passado mês de agosto, um projeto legislativo do Governo (“DL/169/XXIII/2022”), através do qual se propõe uma simplificação da atividade administrativa relativamente a procedimentos relacionados com a proteção do ambiente. Mais precisamente, e segundo o respetivo preâmbulo, pretende-se, com este diploma, “eliminar licenças, autorizações e outros procedimentos administrativos” que configurem exigências “desproporcionadas” e “sem que tenham uma efetiva mais-valia ambiental”. Sem prejuízo desse objetivo de simplificação, o Governo sublinha que esta iniciativa não levará a uma “diminuição dos standards de proteção ambiental ou qualquer agravamento de risco para o ambiente”, antes se pretendendo que “a atividade da Administração Pública na área do ambiente fique mais concentrada na efetiva proteção das atividades com risco para o ambiente e na fiscalização”.

Entre as alterações propostas, encontram-se aspetos do regime da Avaliação de Impacte Ambiental (“AIA”). A ideia de promover a simplificação de procedimentos administrativos, e particularmente do procedimento de AIA, é consentâneo com uma Administração que se pretende menos burocrática e colaborativa com os cidadãos, e é, por isso, de saudar. No entanto, há vários aspetos deste projeto legislativo que merecem uma observação crítica, entre os quais a alteração proposta sobre o regime do deferimento tácito no âmbito da AIA, aspeto que pode ser encarado como a manifestação principal da desburocratização que o Governo advoga.

O projeto propõe, pois, a criação de um novo procedimento para facilitar o reconhecimento de deferimentos tácitos, quer na emissão de pareceres emitidos no âmbito do procedimento de AIA, quer na emissão da Declaração de Impacte Ambiental e da Decisão de Conformidade Ambiental do Projeto de Execução. Note-se que a regra do deferimento tácito já vigora no atual regime de AIA. O que está em causa nesta alteração é antes, (i) por um lado, agilizar o regime de deferimento tácito já previsto, propondo que “uma entidade administrativa a designar” emita, “de forma desmaterializada e gratuita” um ato certificativo do deferimento tácito ocorrido, e através do qual o particular poderá “comprovar perante qualquer entidade administrativa”, que a sua autorização foi obtida dessa forma (citamos, de novo, o preâmbulo do projeto legislativo); (ii) por outro lado, está também em causa no projeto, a previsão de uma nova consequência para a emissão de ato expresso, posteriormente à formação do ato tácito, uma vez que se vem propor que o parecer ou decisão expresso emitido a posteriori seja um ato nulo (ou seja, um ato insuscetível de produzir efeitos jurídicos). Estamos, pois, perante uma alteração relevante à figura do deferimento tácito, e que levanta muitas questões.

Em primeiro lugar, a alteração proposta leva-nos a questionar a compatibilização dos objetivos de simplificação administrativa com a necessidade de assegurar o cumprimento de standards de proteção ambiental, e, a esse nível, de assegurar o cumprimento da própria Diretiva AIA. O controlo de impactes negativos sobre o ambiente é, naturalmente, posto em xeque com a emissão de pareceres e/ ou decisões favoráveis tácitas. Esta observação será ainda mais relevante se considerarmos que – apesar de o deferimento tácito no domínio da AIA sempre ter sido visto como uma forma de estimular a celeridade da Administração – o Tribunal de Justiça da União Europeia já se pronunciou no sentido de que tal figura é incompatível com as exigências da Diretiva AIA. Apesar disso, com a alteração agora proposta, o legislador parece ignorar a posição do Tribunal de Justiça, expondo-se assim a uma situação de incumprimento da Diretiva.

Em segundo lugar, é de questionar a opção do legislador em investir meios na promoção do deferimento tácito nestes moldes, isto é, procedendo à criação de um novo mecanismo de emissão de atos certificativos, designando uma entidade administrativa para esse efeito, ao invés de optar por reforçar os meios técnicos e humanos da Administração, com vista a resolver o “problema de fundo” aqui em causa – a falta de cumprimento dos prazos legais e da emissão de pareceres e decisões tempestivas.

Em terceiro lugar, é de notar que o novo mecanismo de emissão de atos certificativos não terá um funcionamento tão simples quanto possa parecer à primeira vista. Na verdade, estamos perante um procedimento com caráter complexo, no âmbito do qual se prevê que, após a solicitação da aludida certidão que atesta o deferimento tácito junto da entidade responsável pela sua emissão (entidade a designar), se desencadeiem diligências confirmatórias junto da entidade competente para a prática do ato omitido e, a partir daí, se proceda à verificação dos pressupostos para emissão de certidão do deferimento tácito. Os benefícios da alteração proposta seriam mais evidentes se a certidão ficasse disponível automaticamente na plataforma eletrónica onde corre o procedimento de AIA, permitindo aceder à mesma uma vez decorrido o prazo sem que houvesse (nessa mesma plataforma), registo ter sido emitido e notificado o ato omitido.

Em quarto lugar, a previsão da nulidade do parecer ou decisão emitida depois de decorrido o prazo de deferimento tácito revela-se manifestamente atípica no contexto do ordenamento jurídico administrativo. A emissão de atos expressos posteriormente à formação de ato tácito é algo que sucede recorrentemente na Administração, e particularmente nos procedimentos de AIA. Efetivamente, a validade do ato expresso emitido pode ser posta em causa face aos efeitos constitutivos de direitos do ato tácito. Mas pergunta-se: ao prever a nulidade tout court dos atos expressos emitidos depois do prazo previsto para o deferimento tácito, como se harmonizará essa consequência com o regime geral da invalidade do ato administrativo, assim como com os regimes da anulação e revogação administrativas (todos previstos no Código do Procedimento Administrativo), ao abrigo dos quais se enquadra geralmente o ato expresso posterior à formação do ato tácito? Será, certamente, de entrever a colocação de problemas a este propósito.

Em quinto e último lugar, questiona-se a efetiva relevância prática da alteração proposta e a sua utilidade para os particulares. É que, muitas vezes, os particulares já preferem a obtenção de decisões expressas em vez de decisões tácitas, seja por causa do incremento da sua responsabilidade ambiental e social, seja porque o ato tácito lhe dá uma maior segurança na sua atuação, o mesmo valendo para entidades terceiras que interajam com os promotores de projetos sujeitos a AIA (p. ex. bancos, no contexto da concessão de financiamento sobre os projetos, ou outras entidades, p. ex. entidades competentes para a atribuição de fundos europeus).

Conclua-se, dizendo que, com esta iniciativa legislativa, o legislador mostra-se bem-intencionado, mas o impulso dado à figura do deferimento tácito é muito questionável, seja por razões de cumprimento da Diretiva de AIA, seja por razões de operacionalidade dos procedimentos e mesmo da sua utilidade para os particulares. Espera-se, pois, que o projeto aqui em causa seja aperfeiçoado, especialmente no que se refere a este “novo” deferimento tácito no Regime da AIA.

NOTA: O Autor escreve segundo o Novo Acordo Ortográfico

Sobre o autorDiogo Gaspar

Diogo Gaspar

Diogo Gaspar, advogado da área de Direito Público da Cuatrecasas
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